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Aprendendo a Difícil Arte de Existir – Papo de Cuidador
- 15 de agosto de 2019
- Posted by: Alzheimer360
- Category: Cuidador
“Quando meu pai olhou nos meus olhos, com angústia e medo e me disse:
– Mirinha o que está acontecendo comigo? Eu pareço um bobo.
Senti como se uma mão esmagasse meu coração. Engoli o choro e tentei falar com naturalidade:
– Pai o senhor está estressado, o diabetes subiu muito e agora temos que fazer tratamento, só isso.
E sai de perto para que ele não visse o meu desespero.
Acho que ele nunca percebeu que eu estava apavorada e morria um pouco a cada dia.
E eu senti pena dele e de mim.
Dez anos se passaram e uma tarde mamãe me chama:
– Mirinha me responde uma coisa, eu estou um pouco confusa, você é minha mãe ou minha irmã? Os olhos estavam fixos nos meus e fiz um esforço imenso, para que ela não percebesse o meu desespero.
Aquela mão, que um dia esmagou meu coração voltara.
– Sua filha minha velha.
– Ah! Deixa de bobagem eu não tenho filhos.
– Então sou sua irmã porque para sua mãe estou um pouco conservada.
Ela riu e novamente eu sai de perto, para ela não visse o meu desespero.
Então eu sentei na varanda e não senti pena, nem dela e nem de mim, mas compaixão.
Então eu entendi o que a vida estava tentando me ensinar, a diferença entre pena e compaixão.
Eu sinto pena quando olho o outro com os meus olhos, e me acredito acima do mal que o aflige. E nesse sentimento existe a sombra da arrogância, por imaginar que eu estou livre desse mal; talvez um pouco de orgulho por estar acima desse ser que sofre, como se a minha natureza fosse isenta de algumas dores, por mérito próprio.
A pena me coloca acima do outro e a minha arrogante “superioridade” sussurra – “estenda a mão para esse pobre ser.”
Pronto! Minha bondade é meu escudo contra as dores do mundo.
Coitadinha da minha mãe… coitadinho do meu pai… e eu cuidei dos dois, como sou iluminada, generosa, altruísta…
A pena é tão arrogante quanto a ilusão, de que estender a mão para quem está no chão é um gesto nobre, feito por um ser superior e iluminado.
Mentira!
No momento em que eu senti pena do meu pai e de mim mesma, eu fechei a porta da minha real natureza. Naquele momento éramos dois coitados.
Quando olhei minha mãe e me permiti olhar além da minha lógica limitada e mesquinha, compreendi que naquela cena existiam dois humanos, um mestre e um aprendiz. Cada um exercendo o seu ofício de cuidar da Vida, não da vida – sobrevivência, mas da Vida em abundância.
Minha mãe era a mestra me ensinando que, todas as certezas e regras que me sustentam são tão frágeis quanto uma brisa em uma tarde de verão. Refrescam por um instante, mas nada podem contra o Sol, a fonte de calor.
Então eu comecei a olhar meus pais com os olhos deles, com compaixão. A compaixão não me coloca acima do outro estendendo a mão, mas me ajuda a sentar ao lado dele para buscarmos juntos, a força para levantar e continuar em pé.
Meu pai era meu mestre naquele momento em que disse:
– Eu pareço um bobo.
Hoje eu sei que ele estava tentando me dizer.
– Não seja boba, você e tão humana quando eu e todas as coisas que está se agarrando são voláteis. Aprende comigo Miriam, nós somos iguais e eu estou te aprovando no vestibular do melhor e menos concorrido curso do mundo, cuja única matéria é “a fragilidade e a impotência da natureza humana”.
O que minha mãe, a mestra estava tentando me ensinar?
– Mirinha não me coloque nenhuma expectativa como mãe, não se culpe por nada como filha. Somos duas humanas tentando exercitar um amor que é maior e mais forte do que qualquer convenção, documentos, regras… Nós aprendemos muito juntas, exercendo nossos papéis de mãe e filha, mas agora eu vou te ensinar a cuidar de um ser humano, que não vai te oferecer colo e nem gratidão. Eu te dou o privilégio de aprender essa difícil lição comigo.
E assim nós sentamos no chão, os três e começamos a descobrir juntos, como levantar e caminhar sem expectativas, culpas, ou a arrogante ilusão de que naquele trio existiam os doentes e a saudável boazinha. Eram apenas três humanos aprendendo a difícil arte de existir.
E esse foi o curso mais difícil e enriquecedor da minha vida.
Míriam Morata autora de Alzheimer diário do esquecimento e Alzheimer recolhendo os pedaços
https://alzheimer.loja2.com.br/
Me identifiquei muito com sua história, você conseguiu traduzir muito do que sinto.
Obrigada!