A mão amiga que sustenta a Vida – Papo de Cuidador

Solidariedade sustenta o mundo

Quando cheguei à casa dos meus pais, encontrei mamãe chorando sentada na cozinha, com os braços estendidos sobre a mesa. Sem dizer nada corri para o quarto para ver meu pai, ele estava sentado no vaso sanitário, sobre a tampa e olhava para a torneira da pia, que escorria um fio de água.

– Pai, o que aconteceu?

– Olha que interessante, a água sai desse caninho. – e me olhou com um olhar tão infantil e ingênuo que não consegui conter as lágrimas, desabei.

Meu pai era um homem inteligente, orgulhoso, passava o dia inteiro lendo; calculava e fabricava pontes rolantes, guindastes, macacos hidráulicos… e esse homem que eu aprendi a admirar e amar estava encantado com a descoberta que de um caninho, que eu chamo de torneira, sai água.

A loucura é assustadora, assim como a fragilidade da vida e de todas as nossas arrogantes certezas e regras; quando o Alzheimer entrou em nossa vida, a impotência e o medo se tornaram meus companheiros inseparáveis.

De repente eu constato que não sou do tamanho que imaginava, e o meu mundo tem nuances e tons que eu nunca havia percebido; descubro que minhas regras e certezas não cabem nesse universo habitado por fantasmas, bichos que sobem pelas paredes; filhos e netos que abandonam seus pais e avós sem nenhum constrangimento ou culpa; perambulação ou fugas para “voltar para a casa” que só existe na memória ou, na imaginação desse ser amado que está se despedindo de mim todos os dias.

Passei a vida inteira construindo um castelo de certezas, regras, valores, hábitos… porque o mundo é um lugar perigoso para se viver com a Alma nua; precisava de armaduras e de um lugar seguro e confortável para realizar o ofício de existir. E quando me acreditei segura e protegida de todas o pequenos e grandes riscos de existir, o Alzheimer arrebentou a porta da frente do meu castelo e invadiu cada pedaço do meu mundo e das minhas armaduras.

Mamãe sempre foi uma mulher pudica, quando eu era criança não me lembro de ver suas calcinhas e soutiens pendurados no varal.

Naquela noite mamãe começa a gritar, eu corro para o quarto e ela está nua sentada na cama, arrancou a roupa, a fralda e estava sentada no meio de uma poça de xixi.

– Mãe o que aconteceu?

– Eles arrancaram minha roupa e me deixaram aqui nesta praça, está todo mundo olhando. Me ajuda. Socorro!

Eu abraço aquele corpo frágil, com toda a força do meu amor e desespero e começo a limpar e vestir esse corpo, que abrigou minha mãe e agora está abrigando alguém que desconheço e nem sabe quem eu sou.

E nesse abraço, eu descubro quem eu sou.

Sou uma Alma inquieta e assustada que não consegue mais encontrar uma roupa adequada, para essa “festa da vida”. E essa Alma habita em um corpo limitado, frágil, cheio de dores e cansaço. E esse corpo cansado habita um entre 100 bilhões de planetas, em uma entre 2 trilhões de galáxias –  que solidão!

E nessa imensidão de ruínas e infinito, eu descubro que a única coisa que realmente sustenta a vida é uma mão amiga estendida em minha direção; é uma mão querida que aceita minha mão entendida em sua direção.

É solidariedade e a compaixão que nos salvam do Alzheimer e das dores de existir.

Míriam Morata autora de Alzheimer diário do esquecimento e Alzheimer recolhendo os pedaços.

Vem aí o Mutirão “Cuidando do Cuidador”