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A Roda da Vida – Papo de Cuidador
- 29 de novembro de 2018
- Posted by: Alzheimer360
- Category: Cuidador
De repente me dei conta de que escondidas nas dores estavam guardadas, as lições mais preciosas da minha vida.
O que eu aprendi com o Alzheimer?
Que tudo pode mudar para sempre, a qualquer instante, mas o Amor que ofereci e recebi está intacto e sustenta o eixo da Roda da Vida.
O Amor é o ponto imóvel do Universo, é ele que sustenta e permite que a Roda da Vida gire e construa momentos desesperadores e acolhedores; instantes de encantamento e felicidade inimagináveis, que nos fazem tocar a dimensão mais sublime da Vida; e instantes onde o vazio, a solidão visceral e a impotência nos deixam tão assustados, como uma criança que solta das mãos da mãe e entra em pânico, enquanto experimenta o sentimento de abandono absoluto.
Ainda que essa mãe esteja por perto, atenta ao filho, ele chora tão alto que não consegue ouvir a voz que chama e tenta acalmá-lo. O medo e a fragilidade riem da nossa orfandade, da nossa profunda necessidade do primeiro colo, do beijo de boa noite, e do olhar amado que nos conforta e empurra para a Vida.
Talvez seja mais ou menos assim, quando não ouvimos as respostas desse Deus silencioso, que desenha caminhos e regras que jamais compreenderemos.
Mamãe me olhava com aquele olhar vazio, como se visse um mundo que eu não conseguia acessar, mas ainda assim tentava me trazer até aquele espaço de amor que construímos juntas.
– Mirinha, eu tenho uma dúvida, você é minha mãe, ou minha irmã?
– Sou sua filha, minha velha.
– Ah! Deixa de brincadeira, eu não tenho filha.
Ela não tinha filha, mas tentava me trazer até seu universo amoroso, onde as mães e irmãs constroem histórias de cumplicidade a amor.
– Então eu sou sua irmã.
– Ah! Eu sabia. E ria com alívio.
Pronto, eu estava inserida no seu universo e ela sabia que me amava e que era amada.
Estávamos nos conectando àquele ponto imóvel – o Amor – que sustenta e possibilita todo o movimento da Vida. E de alguma forma, naquele momento nos sentíamos protegidas e acolhidas pela dimensão amorosa do Universo.
Uma tarde eu estava levando meu pai ao hospital para fazer radioterapia, no caminho ele me olhou e perguntou:
– Você mora por aqui?
– Eu moro aqui perto. – Respondi meio anestesiada, porque sabia que ele não me reconhecera.
– Onde estamos indo?
– No hospital.
– Você está doente?
– Não, o senhor vai passar no médico para ver porque está meio esquecido.
– Eu não ando esquecido. Como você chama?
– Míriam.
– E você faz o que? Trabalha no hospital?
– Não, sou arquiteta.
– Puxa que bacana. Arquiteta.
E me olhou com orgulho indisfarçável.
Orgulho é uma das máscaras do Amor; meu pai sabia que nós tínhamos orgulho um do outro e naquele momento, eu consegui encontrar uma porta para penetrar no mundo dele.
– Sabia que foi o senhor quem pagou minha faculdade? Se não fosse pelo senhor eu não seria arquiteta.
Ele deu um sorriso tímido e de repente nós estávamos resgatando nossa história. Continuamos em silêncio durante todo o percurso, ele saboreava seu orgulho e eu saboreava a gratidão profunda que sentia por aquele homem forte, que me ensinou a correr atrás dos meus sonhos.
Mais uma vez a roda da vida girava, mas eu aprendi a encontrar o eixo e me agarrava nele. O eixo sempre foi o Amor, mesmo depois que o Alzheimer arrancou de nós dois as histórias que construímos juntos, eu sabia que qualquer gesto de amor, gratidão, generosidade… iriam escancarar as portas dos nossos mundos, e novamente compartilharíamos a experiência de existir.
Através do Amor eu conseguia participar novamente do seu universo. Não o Amor dos poetas, esse exige uma certa dose de lucidez e delicadeza, mas o Amor dos garimpeiros, que entram na lama e resgatam o ouro que sempre esteve à sua espera; o amor dos escultores que rasgam a pedra para que a beleza se revele.
O meu Amor fazia barba e passava colônia no rosto para ficar cheiroso, trocava fraldas, lavava lençóis e cobertores ensopados de xixi, ouvia as mesmas histórias dezenas de vezes e ria com todas elas, passava as noites em claro abraçada para espantar o medo e proteger dos bichos, o meu amor amassava a batata para que ela não engasgasse, o meu amor cortava as unhas, lixava e dizia – olha que coisa mais linda que ficou!
E foi esse Amor que sustentou minha esperança e força, para continuar cuidando deles, até o último instante quando eles retornaram para aquela casa feita de Amor, de onde todos nós viemos.
O amor é esse eixo sagrado, que não nos permite girar com a roda da Vida, mas nos ensina a lidar com todos os movimentos dessa roda, mesmo aqueles mais dolorosos e transformar tudo isso em Beleza e Sabedoria.
Míriam Morata, autora de Alzheimer diário do esquecimento e Alzheimer recolhendo os pedaços
Os livros "Alzheimer diário do esquecimento" e "Alzheimer recolhendo os pedaços" não são vendidos em livrarias, apenas…
Publiée par Alzheimer diário do esquecimento sur Vendredi 21 septembre 2018